segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Prosa 1



Enquanto eu reflectia silenciosamente sobre estas coisas para comigo e escrevia cim um estilete o meu lacrimoso queixume, vi aparecer junto de mim, por sobre a minha cabeça, uma mulher de rosto venerando, olhos cintilantes e perspicazes mais do que a normal capacidade humana, de cor vívida e de um vigor inexaurível, embora fosse tão carregada de anos que de modo algum se pensaria que fosse da nossa geração, com uma estatura difícil de definir. Na verdade, ora se reduzia ao tamanho normal dos homens, ora parecia tocar o céu com o cimo da cabeça. E, quando erguia a cabeça mais alto, penetrava no próprio céu e escondia-se da vista dos homens que a contemplavam.
As suas vestes eram tecidas com requintado lavor, com finíssimos fios e com um material indissolúvel, que, como depois percebi quando ela avançou, ela própria tecera por suas mãos. A beleza destas vestes tinha sido coberta por uma patine de vetustez negligenciada, como costuma acontecer com as imagens fumosas. Na sua fímbria interior lia-se um ∏ grego, na superior lia-se um Θ bordado, e entre as duas letras, à maneira de uma escada, viam-se marcados alguns degraus, para se subir por eles da letra inferior para a superior. Porém as mãos de homens violentos tinham rasgado esta mesma veste e arrebatado os pedaços que cada um conseguira arrancar, Na sua mão direita estavam os seus livros, na esquerda tinha um ceptro.
Quando viu as Musas da poesia em volta do meu leito e a ditar-me as palavras para os meus lamentos, perturbando-se um pouco, enfurecida e com olhar ameaçador, disse:
Quem permitiu a estas galderiazecas de teatro aproximarem-se deste infeliz, não para aliviarem com remédios as suas maleitas mas antes para ainda mais as alimentarem com doces venenos? São estas, com efeito, que com os estéreis espinhos das emoções matam a sementeira da razão, abundante em frutos, e a costumam as mentes dos homens à doença, em vez de as libertarem dela. E se as vossas carícias arrastassem algum inculto, como costumais fazer, as mais das vezes, eu acharia que seria algo menos difícil de tolerar, pois ao fazê-lo em nada prejudicaríeis as minhas obras, mas logo a este, educado nos estudos eleáticos e académicos!? Fora mas é daqui, Sereias tão doces que provocais a morte, deixai-o para que com as minhas Musas eu o cure e salve!
Aquele coro, invectivado por estas palavras, pôs os olhos no chão, entristecido, e, manifestando a sua vergonha pelo rubor das faces, saiu triste do aposento. Eu, pelo meu lado, que devido às lágrimas tinha o olhar turvo e não conseguia descortinar quem seria aquela mulher com tão imperativa autoridade, fiquei embasbacado, de olhos pregados no chão e silenciosamente fiquei na expectativa do que iria ela fazer a seguir. Então ela, chegando-se mais perto, sentou-se na beira do meu catre e, vendo o meu rosto pesaroso de desgosto e fixo em terra devido à tristeza, pranteou a perturbação da nossa mente com […] versos.


Boécio, A Consolação da Filosofia 

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