sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

"Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio", de Ricardo Reis



Vem sentar-te comigo, Lídia, à Beira do Rio



Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassosegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar. 

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço. 



Ricardo Reis
(Heterónimo de Fernando Pessoa)


Eu amo Lídia — a principal ideia a reter deste poema.
É um poema bonito. Fala-nos de uma forma especial, porque nos conta uma história especial.
De modo a tornar esta análise algo mais natural, chamemos ao sujeito poético Ricardo (o primeiro nome do autor)

Ricardo ama Lídia.
Ricardo é louco de amores por Lídia.
Ricardo idolatra Lídia. Claramente.

Mas não deve ser o tema central do poema. Ricardo gosta, não só de estar com Lídia, mas de ser com Lídia. Como se pudéssemos encontrar-nos com alguém, ser com eles durante dez a vinte minutos, vá, seja uma tarde, e dizer "Obrigado. (pausa). Adeus." e seguirmos o nosso caminho, confiantes na certeza de que aquela é uma sensação para a vida inteira (a de ser com alguém) e que é, sem dúvida, a experiência mais importante de uma vida (a nossa vida).


Eu compreendo Ricardo. Gostava de poder dizer que sim, e que percebo o porquê de ele apreciar tanto o ser com Lídia à eira do rio. À beira do rio, que até lhe proporciona uma bela de uma metáfora, sobre a efemeridade da vida e do amor, e Ricardo, dirigindo-se a Lídia, fala sobre o Fado, o destino.


Ora, o destino é a morte. Sim.


E a forma que Ricardo arranja para contornar a morte (a sua, de Lídia, de um amor) é a de a encarar de forma infantil a morte e a vida e Lídia, que é ambas. É ser pagão, não acreditar em nada, é a curiosidade pelo reaprender da confortável ignorância infantil.
Para ser feliz. Feliz pela não-agitação, pelo diminuir da amplitude do seu "índice de felicidade". Pela não-procura de emoções grandemente antagónicas. Aurea Mediocritas. E é isto que Ricardo defende. Acho eu, espero eu.


Este poema não é uma mera "Ode a Lídia". É uma transcrição do discurso de Ricardo quando este se senta com Lídia à beira do rio. Percebemo-lo em "e não temos as mãos dadas", um aparte, um acidente de percurso na sua defesa, na sua justificação pelo modo como os dois agem, porque precisa de o explicar. E Lídia, nada diz. Percebe a importância do momento para ambos, mas sobretudo para o carácter racional de Ricardo que tivera dificuldade em encontrar explicação pelo gozo que lhe dava sentar-se com Lídia, ser com Lídia.


E Ricardo larga a mão de Lídia, pois não se quer cansar dela.
E o aroma das flores atenua o ambiente aparentemente leviano e sereno da beira-rio.

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