quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Interpretação do poema "Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio", de Ricardo Reis

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
                   (Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
                   Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
                   E sem desassosegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
                   E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
                   Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
                   Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
                   Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
                   Pagã triste e com flores no regaço.





  Ricardo Reis, um dos famosos heterónimos de Fernando Pessoa, “escreve” este poema, de tema amoroso, para uma amada, Lídia.
  A meu ver, devemos fugir à ilusão óbvia para quem possui conhecimentos sobre Fernando Pessoa. Ricardo, o poeta, não passa de um mero heterónimo. No entanto, este poema, de maneira discreta, levanta a impressão que o poeta é mais que um “alter-ego”. Há a criação de uma alma, e é isso que dá vida ao poema.
  O sujeito dirige-se a Lídia, sem qualquer problema em assumir que não resiste à tentação de ter algo rápido, momentâneo, fugaz. O compromisso, embora interessante para o sujeito poético, não passa de uma inutilidade. Tanto Lídia como o sujeito sabem que poderiam “trocar beijos e abraços e carícias”, mas remetem-se à tranquilidade do momento.
  O fim, esse, é inevitável, e a morte virá com o tempo. Não há perturbação contra a decadência, porque o que interessa é o momento, numa espécie de carpe diem.
Não é possível dizer se estão inscritos traços de Ricardo Reis, mas este poema cria a impressão que por experiência este sentimento já passou pela cabeça de Fernando Pessoa, e a sensação torna o poema puro.

Sem comentários:

Enviar um comentário